Pular para o conteúdo principal

Terror Noturno: A Autópsia de Emília

O Pesadelo -Nachtmahr- (1781): Johann Heinrich Füssli

Já estava de manhã quando Emília tentou acordar, mas não conseguiu... Deitada na cama, ela sentia uma sensação desagradável de fatos que pareciam acontecer estranhamente distantes e ao mesmo tempo próximos de si. Emília tentou abrir os olhos, falar, mover as pernas, mas não conseguia, ela havia perdido os movimentos. Desesperada, tentou se mover, porém quanto mais ela tentava, com fracasso, se mover, mais se sentia presa à cama, como se seu corpo estivesse mais pesado e duro que o habitual.

“E essas vozes dentro do meu quarto... Quem são essas pessoas?... não me toquem...”, pensava sofregamente, com uma sensação de peso no peito, ao escutar passos em sua volta. De repente, uma voz se tornou familiar, era Teresa, sua irmã mais velha.

-Vocês vão levá-la, é mesmo necessário? Perguntou Tereza, chorando.
-Sim, senhorita.

“Me levar? Para onde?”, falava Emília para si mesma, ansiosa para saber o que estava acontecendo. Algumas mãos desconhecidas e com luvas a seguraram pelas mãos e pelos pés e a tiraram da cama. Ouvia-se um grito dentro do quarto, era a irmã de Emília, quase desfalecendo ao ver o corpo de sua irmã ser levado para o necrotério. 

***

“Eu estou morta, mas como... como eu morri?”, deduziu Emília, desesperada e com vontade de chorar, ao perceber, intuitivamente, que estava sendo levada por dois homens em cima de uma maca, em um corredor longo e sombrio de um necrotério. O corredor era longo e estava vazio. O eco dos passos dos legistas e som fraco das rodinhas da maca provocou em Emília um sentimento de dor e letargia. Sem poder se mover, chorar, gritar, enquanto àqueles homens a levavam, Emília ouvia, longe de seus ouvidos e involuntariamente, em pensamento, um som melancólico, sombrio e doce... era sua música favorita: Asleep.

Chegando a uma sala, um dos legistas descobriu o corpo de Emília. Ela não gostou da atitude de indiferença e insensibilidade que transmitira o rosto do legista. Como ele a tratava daquela maneira. “Eu... ser humano... uma mulher, ainda jovem, que em vida fora muito bonita... uma profissional da física... e que agora eu sou... um corpo... ainda... eu sou um corpo... morto! Morto...”, Emília sentia aflição e não transmitia aflição. Seu corpo era um corpo qualquer, que estava sendo lavado com água e sabão. Constrangida e não aguentando mais presenciar sua necropsia, Emília tentou gritar, pedir a Deus que tirasse sua alma daquele lugar, mas não houve escapatória.

Entrou outro médico-legista na sala, os outros dois colocaram seu corpo numa espécie de cama, estreita. A médica começou a fazer exames palpáveis em seu corpo, a busca de vestígios para determinar a causa de sua morte. Depois do primeiro exame externo do corpo a legista fez várias anotações, que farão parte de um documento emitido pelo IML. Emília, impaciente, esperava o fim de seu tormento.

Os outros dois legistas se aproximaram de Emília para fazer o próximo passo, o exame interno do cadáver, que consistia na abertura de suas cavidades, para fazer um exame minucioso de suas vísceras. Emília sentiu uma forte sensação de opressão torácica que se desenvolveu como um sofrimento não físico, mas espiritual. Emília se surpreendeu por não sentir dor enquanto percebia que os legistas estavam fazendo um rasgo com formato de um Y, que ia de seu pescoço ao púbis. “Eles me abriram ao meio e eu não sinto dor, apenas... uma agonia moral... não, não tirem meus órgãos... minha cabeça... meu cérebro...”.

Depois de duas horas de exame e de dissecção os órgãos de Emília são reinseridos em seu corpo que, finalmente, é fechado.

“E agora, para onde estão me levando?”.

***

“Estou em casa, estou em minha casa! Agora... agora...”, Emília percebeu que voltara para casa, mas que sua agonia não teria fim... Ela acabara de chegar para um velório... O seu próprio velório. Deitada na cama, os agentes funerários a vestiam de branco. Emília sentiu-se constrangida por causa das marcas da costura contínua, devido as aberturas da autópsia, em seu corpo. “Mas nada disso mais importa...”, ao tomar consciência de seu inevitável fim, Emília decidiu tentar, em vão, não mais se afligir pelo que faziam com seus restos mortais, tentando aceitar, pacata, o que o destino lhe reservara, só lhe restando duas dúvidas, “Como eu morri? Para onde vou?”.

No cemitério, Emília viu sua família em volta de seu caixão, chorando pela fatalidade. “Mas, mamãe, você não morreu há três anos? Como você está aqui... não... para debaixo da terra não...”, gritava Emília, no exato momento de seu sepultamento, quando três homens desamarram as cordas que seguravam seu caixão.

Emília vai para debaixo da terra.

“Ah, buracos negros existem, a morte é um buraco negro, nada escapa a ela... Como uma estrela engolida por um buraco negro... Tirou-me todas as forças... Minha energia vital... Eu vou para a Via Láctea...”, Emília devaneando, sente uma sensação penosa de opressão torácica e falta de ar.

Com um grito de pânico, Emília, sobressaltada, abre os olhos. Ainda era noite. “Viva, eu estou viva!”, ela grita em frenesi, com a respiração rápida, ao conseguir se mover, percebendo que estava no chão de seu quarto, ao lado da cama. Ansiosa e agitada, Emília corre em direção ao banheiro para examinar seu corpo. Feliz, ela sorri para si mesma, o pesadelo não deixara marcas.



Lizandra Souza. 

Comentários