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O papagaio

Imagem da internet/Autor desconhecido.

O marido não queria de jeito nenhum ter filhos, pois era muito pão duro, miserável, mão de vaca, avarento, sovina e “coisa ruim”, por isso a mulher decidiu adotar um animal, assim não se sentiria tão sozinha quando Feliciano fosse trabalhar. Quando ele voltou a casa e viu o animal comendo alguns farelos de pão sobre a mesa, gritou, berrou, urrou e amaldiçoou o bichinho do papagaio. Parecia que o homem tinha o diabo no couro.


— Gilda! O que significa isso? Gritou Feliciano.


A mulher ficou pálida, não sabia o que dizer. Enquanto isso, o grande papagaio pulou da mesa e deu uma “voadora” em Feliciano, que caiu de bunda no chão. Não esperando o infeliz se levantar, o papagaio ligeiramente o atacou com várias bicadas certeiras. Não suportando mais os gritos masculinos de dor e sofrimento, a mulher decidiu parar de só observar a cena e conteve a ave, a afastando cuidadosamente do marido. 


— Perdão, Felice, é que você assustou o bichinho…

— Bichinho? Olhe bem o tamanho dele, mulher!


Nesse momento, ele notou o papagaio o encarando com seus grandes, redondos e profundos olhos pretos. O bicho intimidava-o, parecia que seus olhos iriam pular para fora de tão arregalados que estavam. Eram grandes, redondos e escuros, e estão me desejando o mal, pensava Feliciano ao ver que o papagaio nem piscava, nem se mexia, quase nem respirava, encarando-o.

A mulher, por sua vez, não reparou a ira do papagaio, foi ao encontro do bicho e o colocou nos braços.


— Você está louca! Não viu o jeito que ele me olhou? Parecia que tinha o tinhoso nele... Bicho estranho, coisa ruim, vai de reto!

— Não fale assim, coitadinho do Félix, olhe bem como ele é lindo… Por favor, me deixe ficar com ele.

— Jamais! E joga logo esse bicho medonho fora, nem para canja serve.


A mulher começou a chorar, seus planos de fim de solidão estavam acabados. Vítima cega de um relacionamento abusivo, ela achava que não podia fazer nada para ficar com Félix, pois o marido é quem mandava na casa. Gilda pegou o animal e o levou de volta à ONG em que o adotara. O bichinho ficou incontrolável, se Gilda não estivesse tão desolada teria notado que os olhos do papagaio ficaram repentinamente diferentes.

Na madrugada seguinte, Feliciano teve seu primeiro grande pesadelo: ele acabara de chegar a casa depois do trabalho, chamou a mulher, a procurou, mas não teve resposta. Gilda o abandonara. Ele chorou um pouco e depois foi tomar banho. Alguma coisa boa tinha nisso, as despesas haviam diminuído. Ainda no pesadelo, o homem deixou a comida queimar, o que foi um tremendo prejuízo para ele, por isso chorou de novo. De repente, começou a chover, o teto da casa desabou e do céu caíram não uma chuva de gafanhotos como no apocalipse, mas uma chuva de papagaios com grandes, redondos e profundos olhos pretos. Os papagaios corriam em sua direção, o bicavam, riam de sua cara. Havia um papagaio chefe, um enorme papagaio de olhos estreitos e com cor de fogo, ele vinha na direção de Feliciano com um sorriso diabólico.

Feliciano acordou gritando e pedindo socorro. A mulher levou um susto e caiu da cama.


— Ai Feliciano, que susto! O que aconteceu?

— Mulher! Mulher!

— O quê?

— Foi um pesadelo. Me dê um copo de água gelada.

— Agora?

— Não, depois de amanhã… Claro que agora... Ainda te faço um feito grande!


A mulher trouxe a água. O homem bebia desesperado, ainda estava um pouco pálido. No dia seguinte, no almoço, Gilda falou sobre seu desejo de ter aquele papagaio de volta. Quase que seu marido teve um AVC.


— Já disse que eu não quero mais falar nesse bicho lazarento! 

— Mas...

— Chega!

Naquela noite, Feliciano teve um pesadelo ainda pior que o anterior: muitos anos depois, ele seria pai. Gilda teve vinte e sete filhos seus, eram tantos que nem os nomes ele decorava. Sete eram adultos, cinco eram adolescentes e quinze eram crianças de todas as idades. A maioria eram pirralhos chorões, babões, bobões, catarrentos e fedidos. Nenhum da prole trabalhava, para desespero do homem. “Tudo vadio”, lamentava. Era pivete para todos os lados, se ele ia à cozinha, tinha um monte de menino comendo, gastando os alimentos que ele a tanto custo tinha comprado, se ele ia ao banheiro, tinham outros sebosos fazendo as necessidades fisiológicas, se ele ia ao quarto, os mais velhos estavam aumentando a família. “Ah, meu Deus, como isso foi acontecer? Só pode ser uma maldição daquele papagaio desgraçado”, pensava Feliciano enquanto tinha um ataque cardíaco no sonho. Ele acordou chorando, parecia que ia se desmanchar em lágrimas.


— O que foi, marido?

— Mulher, me perdoe, eu deixo você ficar com o papagaio, mas me jure pela sua alma que você não terá nunca nenhum filho. Muito menos vinte e sete...

— Calma, Felice, eu juro! Você deixa mesmo eu ficar com Félix?

— Que a sua alma queime no quinto dos asfaltos do inferno se estiver mentindo para mim, Gilda! Sim, traga o animal, mas deixe-o longe de mim, aquele diabo!


No dia seguinte, Gilda trouxe o papagaio de volta a casa. A primeira reação do bicho ao ver Feliciano foi a mesma do primeiro dia. Deu uma “voadora” que dessa vez só quase o derrubou. O homem, porém, ficou quase tranquilo, disse alguma coisa besta, e foi se trancar no quarto. O pesadelo da noite anterior o traumatizou. Qualquer coisa era melhor que ter vinte sete filhos, até mesmo ter um papagaio lutador em casa, pensava o homem, deprimido.

Tudo mudou em três meses. A vida de Feliciano virou um inferno. O papagaio o odiava mortalmente. Queria vê-lo pelas costas. Quando Gilda não estava por perto, Félix bicava Feliciano, xingava-o e arregalava seus grandes, redondos e profundos olhos pretos, o que, obviamente, atormentava o homem. Ele tinha a ideia de que aquilo era uma praga.

Não aguentando mais sofrer, o homem armou um plano sórdido para se livrar do papagaio: envenenaria o bicho. Depois de sua trágica morte, ele adotaria outro animal para Gilda, um cachorro, um gato, um coelho, até uma vaca para deixar a mulher feliz e longe da ideia de ter filhos.

Mas como na vida de Feliciano nada são flores, deu tudo errado. Gilda comeu o lanche envenenado do papagaio. Quem diria que a mulher gostava de farelos de pão seco. Feliciano ficou desolado, apesar dos pesares, ele gostava da mulher e agora seria impossível conseguir uma que aceitasse não ter filhos. Chorando sobre o corpo caído da mulher, ele pensava em como sairia ileso daquela situação e como se vingaria do animal. 

O homem, furioso, olhou para os lados à procura do bicho, queria matá-lo de qualquer jeito. Ao vê-lo em cima da mesa, não teve mais forças nem coragem. O papagaio estava arregalando para ele os seus grandes, redondos e profundos olhos pretos.


— É tudo culpa sua, papagaio infeliz! 

— Uéué! Haha! Culpa sua, culpa sua, uéué… Falava com voz rouca o papagaio, rindo da cara de Feliciano.


O homem decidiu esconder o corpo da mulher no quintal de casa. Ele não podia contar para a polícia. Ninguém acreditaria que o veneno era para o animal e ele não queria ir para o xadrez. Vestiu a mulher de branco, beijou suas faces, pediu perdão, rezou alguma coisa, pediu perdão de novo, colocou o corpo num caixote de madeira e depois o enterrou. Ao terminar o ritual, ele sentiu-se um pouco mais aliviado, o que, todavia, não perdurou muito: o papagaio a todo instante o encarava com seus grandes, redondos e profundos olhos pretos. Resolveu se trancar no quarto e pensar no que faria da vida e com o papagaio. 

Duas semanas se passaram e Feliciano já estava até contente, pois havia pensado em uma solução. Para não ter que ver os grandes, redondos e profundos olhos pretos do papagaio, ele colocou uma faixa nos olhos do bicho, assim cobria a “praga” do animal e tinha um pouco de paz em casa. 

Completando um mês desde o incidente com Gilda, Feliciano ouviu a campainha tocar insistentemente pela manhã. “Não são nem sete horas, meu Deus!”, reclamava o homem, enquanto abria a porta. Para sua surpresa, era a polícia.

— Bom dia, senhor… Recebemos a denúncia de que a sua mulher está desaparecida há um mês. O que o senhor pode dizer sobre isso?

— Bom dia! É mentira, boato, minha mulher não sumiu… Aliás, quem inventou isso?

— A pessoa de voz rouca não quis se identificar... Mas e sua esposa, podemos falar com ela?

— Ela viajou, não sei quando volta... problemas de família, lá no interior do Ceará.

— Tudo bem. Desculpe-me o incômodo, deve ter sido trote. 

— Com certeza, chefia!


Quando o policial se virou para ir embora, escutou uma voz rouca de dentro da casa.


— É mentira, é mentira... Gilda está morta, ele a matou e a enterrou no quintal de casa. Uéué... Peguei o bobo na casca do ovo... Uéué...


O policial, perplexo, chamou dois colegas que aguardavam na viatura, e resolveram averiguar o que estava acontecendo. Foram até o quarto principal e lá acharam o papagaio de olhos vendados. Apesar das lágrimas inundando os seus olhos, Feliciano era o único que conseguia ver o sorriso de satisfação do papagaio. Quando os policiais retiraram a venda do animal, o anfitrião tremeu ao notar os grandes, redondos e profundos olhos pretos em sua direção.


— Que maldade, deixar uma coisa linda dessas de olhos vendados, quem foi o animal que fez isso com você, amiguinho? Eu quero você para mim! Falava um dos policiais ao papagaio.


Feliciano ainda tentou dizer que estava brincando de “cabra cega” com o papagaio, mas os policiais não lhe deram ouvidos, pareciam enfeitiçados pelas palavras do papagaio. O bicho gritava repetidamente que a mulher estava morta, enterrada no quintal, que Feliciano tinha lhe dado cabo. 

Os policiais foram até o quintal averiguar, acharam a elevação do chão estranha e um cheiro podre só tornava tudo mais suspeito. Sem muito esforço, desenterraram o corpo em decomposição de Gilda. Feliciano foi algemado, tentou contestar, dizer os fatos, mas não deu em nada. Na saída de casa para a delegacia, tentando ver o seu carrasco uma última vez, Feliciano olhou para trás e o viu sorrindo. Podia jurar de pé junto que seus olhos agora eram estreitos e tinham cor de fogo.


Lizandra Souza.

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